In memoriam

Adormeceu sentada no sofá, com a tv ligada e o bichano no colo. Embora os gatos tenham a fama de malandros independentes das madrugadas, esse era diferente. Ele não saía na calada da noite e voltava no início do dia, cheio de histórias para contar. Esse era diferente. Alguns vizinhos diziam que era a própria encarnação do marido, falecido há cinco anos. Poucos dias após o enterro do velho, a neta lhe deu o pequeno felino de presente, que veio com o corpo inteiro negro e uma faixa esbranquiçada entre os olhos. Como era moradora daquelas redondezas desde o início das coisas, armava-se de alguns privilégios, por isso entrava em qualquer comércio com ele no colo e não era reprimida, por exemplo. O animal nunca adormecia avulso e sempre pregava os olhos somente depois dela. Agora não tinha sido diferente. Ela anoitecera no intervalo da novela e, acordada por um mexilhão do pobre, assustou-se e o tocou a berros. A solidão havia lhe trazido um gato, o mal de Alzheimer estava levando-o embora.



*Originalmente publicado na coluna “conto… ou não conto?”, no jornal Taperá, em 23/11/2013.