Comia escondido, como acreditava que deveria ser a cerimônia da alimentação. Dizia sempre que comer era coisa para ser feita solitário, num momento único de profunda introspecção, no qual a comida era mero instrumento da meditação. Assim, agachado entre o fogão e a geladeira, lembrou do…
balcão da padaria e os dois pingados; da calçada apertada e a loira que se aproximava, seu cheiro; a esquina demasiadamente semaforizada; a moeda oxidada no saquinho preto da pedinte; o gordo saindo rápido da agência bancária; os livros espíritas na banca de revista; a vendedora lacrimejando, na loja de cosméticos; os relógios caros da vitrine; a árvore torta da praça; a bifurcação viária lembrando um estilingue; a sombra da biblioteca no asfalto; o chiclete grudado no asfalto; a soleira quebrada; o rangido da porta; o cheiro do sofá encardido; a gata magra; a televisão falando sozinha; o vestido sem graça deitado na cama; o imã falido na geladeira marrom e as duas salsichas cruas… uma já pela metade.
*Originalmente publicado na coluna “Conto… ou não conto?”, no jornal Taperá, em 26/10/2013.