Cresci em vila de paralelepípedos com casas de pouco muro e portão; de longas reuniões na calçada das noites de verão; das vendedoras de Yakult; de batata doce assada em fogueira; de casas pouco construídas; de esconde-esconde em casas pouco construídas; de Dona Antônia e suas coxinhas; de Seu João e suas plantações de mandioca num terreno baldio qualquer da rua.
Cresci ouvindo, quando entardecia, a voz com alguma vibração que cantarolava catequizando o bairro todo. Dona Antônia, uma senhora de estatura robusta, ia até a pequena sacada de uma “casa amalera”, que ela mesma pintou, para lavar suas roupas e aproveitava para soprar melodia numa ópera sem o menor repúdio ou vergonha. Cantava alto. Seu vozear despertava a rua de ponta a ponta. Uma mesma voz que “ia loooonge” nas estradas da cidade pequena que nasceu – conta ela, próxima a Juazeiro do Norte, quando saía pra vender pequi no centro.
Senhora de uma das primeiras casas da vila, quase não viajava. Sua pele mulata favorecia a peleja pela cidade inteira à pé, sabendo dizer com precisão onde era possível encontrar qualquer igreja… A “briba” sempre guardava algumas notas de pouco valor dentre suas páginas amareladas e pouco lidas, notas que sempre iam parar nas mãos de algum pastor fervoroso ou nas de Juliano, seu neto, garoto que era surpreendido em meio de brincadeira de amigos com a inquisição em voz alta e atropelando palavras:
─ Juliãããããããno!!! Quedê o dinhero que tava dento da minha briba?! – um susto, indiferença e nenhuma resposta.
Dizer o quê? A essas alturas os salgadinhos, as pipas, as “fubecas”… já estavam pagas.
Impossível deixar de lembrar o dia que a “casa amalera” ficou no escuro por conta dum “cuitu ciquitu”. As coxinhas com massa de batata, inesquecíveis, necessitariam de um esforço extra, mas o “cuitu ciquitu” não seria barreira para sair cidade afora as vendendo. Complementar a aposentaria era questão de sobrevivência. Só o que recebia como aposentada não dava para comprar, com folga, o “Jubiloso”, como dizia, referindo-se à milagrosa ginkgo biloba.
Coisa de muito tempo atrás, Antônia, menina nova de muita prenda, trabalhava no campo quando, num levantar das vistas para esquecer da vida sofrida, encontrou, nas reentrâncias do cafezal, olhos azuis e de forte expressão… “Até tinha otros môço, mas era Jão mesmo que era pa cê”.
Dona Antônia, desta feita, já havia conquistado o apreço de seu tio mais abastado, que dispunha de afeição diferenciada por ela em relação às outras sobrinhas. Assim, foi pouco pecado pedir ao nobre “um poico, um boio, uma vaca, pá começá uma criação”. Com pouco tempo, Seu João e Dona Antônia tinham um pedaço grande de terra, algumas cabeças de gado e “feizuada” nas celebrações da família.
Mas tudo isso é deixado para trás quando o único filho do casal, buscando coisa diferente, vem para São Paulo. A instituição Família fala mais alto e o casal aporta no interior do estado, construindo e habitando a segunda casa duma vila na qual seriam protagonistas. Esta em que cresci.
A mesma que tem lembranças de Seu João berrando “deixe de zuada menino”, na tentativa de nos sensibilizar para o fato de que bola batendo no portão é um tanto incômodo. A rua que, com tantos cachorros, fez sair da boca de Dona Antônia, num desabafo, que “esses cachorro cómi meu juízu”.
A rua que cresci. A rua de Dona Antônia e Seu João.
Dona Antônia
* 4 de janeiro de 1928 ☨ 5 de setembro de 2007