Almodóvar vai passar aqui deixar um daqueles óculos. Preciso urgente de óculos. Não esqueça de agradecer por mim. Estarei ocupado com o fígado fraco que habita meu corpo. No entanto, creio a você minha gratidão pelos óculos. Pedi um daqueles que deixam aros ignóbeis nas pessoas deitadas do Becão. Sensato que é, ele provavelmente acobertará o presente com algum embrulho. Não se atreva abri-lo. Reconheço mínimas que sejam as alterações físicas do que estimo. E já tenho pedido esse óculos há tanto tempo que o estimo desde antes. Estimo – concordo! – o desconhecido, mas pra isso é que servem os óculos.
E assim, lentamente o espaço das coisas que amo expande na mesma proporção que ignoro. Das pausas sequenciais nessa crônica, por exemplo, revelo a deficiência fóbica instalada na neurose da minha ansiedade. E assim, virgulado pela pobreza criativa, colho caule de taioba gigante a fim de substituir palmito. É que deveras amo, mas não enxergo!
Vou a passos curvos e fatigados. Quantificando os remédios rejeitados e os comprimidos castigados pelo meu suco gástrico. Tanto espero, que canso. Procuro um banco e, sentado entre uma fonte luminosa, e duas dúzias de flores coloridas, prefiro observar o grupo de andarilhos impacientes da outra ponta, na praça. Mas estou sem óculos.
Levanto-me. Olho no relógio digital do meu celular e percebo que, nem sempre olho praquele relógio com interesse no tempo. Ele havia transformado-se num subterfúgio. Em pé, meu caminho é distante e rápido, agora. Estou indo pra qualquer lugar outro que nem sempre interessa. Eram apenas as pernas adquirindo vida própria. Eram as pernas controlando meu destino. Afinal, um pouco de dependência me inocenta de qualquer culpa. E acabei numa calçada larga de pessoas velozes e lojas vazias, mas não vi muito. Estava sem óculos.
O canto esquerdo do meu olho até teimava uma ou outra observação, mas era impedido por um esbarro desses que nos colocam de volta a um fluxo, andando sem controle e levado pelo movimento alheio, pela massa. Agora, sem óculos, vejo a poucos olhos e da gorda sensibilidade, que os dois homens ao meu lado também não usavam óculos. Mais adiante, de cabelo curto e fone no ouvido, havia outra garota sem óculos. A senhora distinta e elegante, atrás de mim, também não tinha óculos. Acabei num desabafo que ultrapassou meus devaneios e transformou-se num sussurro bufante:
“Como pode esse povo sair de casa sem óculos?!”