Hoje minha avó, respirando 93 anos de idade, conheceu o primeiro dia de sua velhice. Acordou sem despertador às 7h30 da manhã e, sem perceber a presença de meu irmão que fora alocado no quarto para sua segurança, escancarou a janela, abriu a porta e começou a “arrumar” suas coisas. Os porta-retratos continuam disputando atenção com uma caneca verde-limão, o frasco de Ciloxan, uma caixa de perfume, um falso antúrio, um castiçal e duas velas gastas sobre uma toalhinha rendada. Ela arrasta sua arcada curva pelo quarto e depois volta a sentar-se em sua cama percebendo uma reação inédita em seu corpo; está tremendo. Tremendo muito.
Ante esta sensação ela enrijeceu os músculos, atrofiou os membros inferiores e desencadeou uma fadiga que não se aguentou silêncio, vestindo-se de um ofegar alto e suplicante. Uma armação trêmula, agonizante e frágil. Foi vestida e levada para o pronto-socorro. Há bem poucos dias estava tomando um remédio orientado pelo médico a fim de combater a ansiedade, porém o remédio acabou e, nesse retorno às pressas, foi diagnosticado: “a vovó está com síndrome do pânico”.
Pensava meus fracassos e insucessos enquanto, de palpitações excessivas e boca seca, minha avó tomava soro para sedar a vida. Estive calculando minha receita e debitando minhas futilidades ao passo que, no hospital, a guerreira quase secular lutava para viver mais. Pois, num lampejo de sanidade, comecei a sentir saudades. Senti, como que me abraçando inteiro, a importância da sua presença com a gente e a fragilidade da vida.
Filha de italianos da imigração desenfreada no fim do século XIX, fez filhos e histórias. Nas vagas lembranças que me sobram da infância, tem meu avô abrindo o portão da garagem de casa enquanto eu ajudava meu pai a construir o guarda-roupa do meu quarto; minha avó sempre estava atrás, com uma mala bem pequena. Eles viajavam por aí, independentes, cortando cidades em trens e ônibus. Mas o mais especial era sempre ir visitá-los.
Lembro do forno à lenha em plena Grande São Paulo de 1990, no fundo de um quintal grande regado à pés de café. Obra de suas mãos, como esquecer da melhor polenta que já comi em minha vida? Divindade servida em uma tigelinha oval de inox. Nunca consegui esquecer a geladeira vermelha e os litros alcoólicos embaixo da cama. Eram pedaços de vida observados atentamente por uma criança do interior. Sensações muito fortes que não caberiam na cartola das frivolidades, por isso as tenho muito fortes até hoje. E, por isso, cada detalhe que partia do hospital informando seu estado, era superestimado.
Meu avô faleceu e, antes que fosse, pediu para que ela ficasse conosco. Ela veio e tive a oportunidade que poucos netos têm; descobri a intolerância, a graça e os limites dos idosos. Ri depois de ler, sob sua recomendação, que Trombofobe era uma pomada em gel e, no canto do meu olho, vê-la passando a pomada no cabelo. Estranhei os dias em que ela deitava com o cabelo bem branquinho e acordava com ele levemente escurecido; sempre atribuindo à uma condição natural e jamais reconhecendo ser coisa da química dedicada à estética. Gargalhei quando ela cantou “pro caboooclo Chiico Tereza moráááá”, numa mistura inusitada de Chico Mineiro com a Cabocla Tereza, clássicos da música sertaneja. Ou ainda de quando ela guardava os fios de cabelo, caídos de canseira, numa redinha para avolumar o penteado mais tarde.
Ela continua viva, mas já perdeu a privacidade do banho sozinha, a leveza dos movimentos, os cabelos escuros, a voz vibrante… e a confiança. Tem tantos netos que mal consegue mensurar. Ana Furlanetto de Souza, vívida em 5 filhos, muitos netos e alguns tantos bisnetos, está cansando.