Livraria Bethânia

De todos os presentes que recebi na manhã do domingo 15 de junho, o maior deles foi saber que Jorge Duarte, então ascendente na sessão especial da Academia Saltense de Letras, era…

a Livraria Bethânia na Salto de minha essência.

Reencontrei o amigo Willhes, que entre um cochicho e outro, não conseguiu esconder o vereador Willhes; vi uma mesa composta pelos irmãos Nogueira, de Indaiatuba, de um lado, e o Juvenil com Garotinho do outro, separados por ninguém menos cômico que Paulo Maluf; presenciei os quadros da exposição derrubados a cada quinze minutos por jornalistas afoitos; ri com um senhor definitivamente fantasiado de terno, que me cumprimentou como se o conhecesse; etc..

Mas nada superou a revelação que Valter Lenzi fez ao anunciar seu indicado para aquela “casa de leis”, como acredita que errou o próprio Jorge Duarte ao referenciar-se. Sim, o guerreiro disse, em discurso de posse, “casa de leis” e imediatamente apontou: “Ops, ‘casa de letras’. A ‘casa de leis’ é a do vereador Garotinho”, brincou se corrigindo. Porém, eu já havia absolvido-o de imediato, afinal, aos da “casa de leis”, muitas letras faltam, e inverter os personagens poderia ser uma ótima experiência.

Imediatamente remontei minhas memórias cortando a rua Rodrigues Alves pra comprar almanaques que ensinavam a desenhar, a revista Mad e outros gibis, além de livros que nunca li. Os almanaques me ensinaram a perspectiva e como ela muda nossa percepção sobre a beleza das coisas. Na revista Mad assumi o pseudo-anarquista que me devora até hoje. Já os livros sempre foram minha paixão mais pelo cheiro de tinta e celulose, que por suas histórias; tinha-os, também, pra alimento de minha fama intelectual e por uma crença estranha de que estar próximo deles, mesmo sem lê-los, faria de mim um indivíduo mais sábio e senhor dos próprios caminhos.

Entretanto, pra mim o episódio mais marcante envolvendo a Livraria Bethânia vem num combo com outros dois ilustres personagens saltenses. É que em esforço estratégico para nos traduzir os antigos impérios, a professora de história Dirce Junko Suda tirava de sua biblioteca pessoal e emprestava a seus alunos, grupo do qual fui parte por duas ou três temporadas na escola Acylino Amaral Gurgel da década de 90, as aventuras da pequena aldeia gaulesa que resistiu bravamente à expansão de Júlio César. Asterix, Obelix, e todos os seus amigos, ajudaram-me a desvendar não só a história da humanidade, mas a minha própria história. Criei, ali mergulhado até a última página, o mundo como o vejo ainda hoje.

Ocorre que, em classe de geografia do notável professor Erasmo Rocha, depois vereador, acabei subjugando sua incrível habilidade de ditar uma apostila inteira sem lê-la, tamanha era minha imersão em mais uma derrota vexatória dos romanos frente à poção mágica de Panoramix. O mestre então, honestamente ofendido, aproximou-se enquanto continuava ditando e me surpreendeu cometendo o delito de ignorar as regiões brasileiras e suas economias. A revista que ia aberta embaixo da carteira escolar acabou confiscada e teve triste destino.

Então, para substituir o material em tempo e não perder o meu prestígio com a invejável dona da História, corri à Livraria Bethânia, onde fui atendido por um homem de fala nasalada que me tranquilizou dizendo se tratar de apenas uma semana para chegar a preciosidade encomendada. Pois só agora, de anos passados e experiências suprimidas, dou-me conta de que era o próprio Jorge Duarte quem me atendia. Era ele quem eu surpreendia descendo apressado de um banquinho de madeira, naturalmente arrumando lotes recentes, em muitas das vezes que passei pelo portal do carinhoso refúgio. Era ele que me deixava tão à vontade para conquistar o universo das letras; agora, sua “casa de leis”.