Quando era criança, acordava na manhã de um sábado e queria açucarar o sangue com um doce bem vagabundo, fosse uma “teta de nêga” ou uma “maria mole”, mas sempre ouvia a frase: “Agora não é hora, menino!” Entretanto, não me explicavam o motivo.
De família grande, sempre compravam esses doces em casa, mas compravam de caixas, e era preciso se comprometer a não devorar tudo antes da hora. Era um compromisso silencioso que jurávamos uns aos outros. Compartilhar foi um conceito fácil de aprender, mas auto-controle nunca foi meu forte. Justificava meus “furtos” observando
todos os meus irmãos comendo a hora que bem entediam.
Faltou motivo e, por isso, hoje tomo sorvete a hora que me der na telha. Minhas refeições são italianas e sem nenhum compromisso com minha saúde. Minha fadiga é reprodução da minha experiência sócio-cultural, que vejo reverberando em meus sobrinhos, carnívoros aplaudidos em pé quando conseguiram roer o primeiro pedaço de costela no bafo.
Pra se ter uma ideia, comecei a divinizar hábitos logo na adolescência. Planejava algumas fugas para comer coxinha num boteco próximo, depois me aperfeiçoei e mapeei os melhores x-saladas da cidade. Hoje sou um paciente patológico moderado, com diversas manias idiotas, como lamber o dedo e mergulhar levemente na superfície do sal, deitar de barriga pra cima e tocar a ponta da língua pra sentir formigar as minhas papilas gustativas.
Faltou motivo para eu ter uma vida saudável. Faltou um esclarecimento sobre a importância da sobremesa vir depois do almoço, de evitar frituras e comer mais vegetais… Não bastava a palavra de ordem, pois a subversão sempre foi mais atraente. Faltou motivo.
Hoje sei a hora, mas tem um monstro invencível dentro de mim.