O lustroso arrogante

“[…] Pendurado na mesma parede há mais de 30 anos, ele observa altivo, esnobe e até com certa prepotência, o tempo passar […]” Crônica de Alex Pinheiro.

Não tem verniz localizado, tampouco aplicação texturizada. É uma impressão dourada simples em cartolina fina, mas com seu brilho. A fonte, com leve serifa, colore em preto os números grandes que contam as horas. Já os minutos, de cinco em cinco, estão impressos em números bem menores, no círculo externo, e só vê quem arrasta a cadeira para usar como escada ou está com os óculos em dia.

Pendurado na mesma parede há mais de 30 anos, ele observa altivo, esnobe e até com certa prepotência, o tempo passar. Viu chegar e sair um conjunto de mesa com seis cadeiras, que foram parar na casa de um dos meus irmãos, mas já cansado. Ele não. Ele segue irrepreensível.

Lembro dele chegando quando eu era ainda criança e corria nos barrancos de um bairro cheio de terrenos baldios. Muito antes, aliás, do dia em que despenquei da árvore e bati a cabeça no concreto da calçada, ressaltado pela raiz da própria árvore, bem diante do portão da Dona Palmira.

Ali desmaiei pela primeira vez na vida. Foi bom desmaiar. Fiquei desacordado por alguns segundos, como me disseram os amigos, mas a minha sensação tinha sido de ter voltado de um sono profundo e gostoso de muitas horas. Acordei descansado, relaxado, leve.

E ele lá, contando o tempo. Não sei se ele veio junto ou depois de um outro relógio. Fofo mas ordinário, esse tal era também um despertador em formato de galo. Um pouco maior do que as minhas duas mãos infantis, levou muita pancada na crista vermelha por anos; era preciso para ele parar de imitar um galo. Ele acordava um para ir trabalhar, outro para ir na escola, e assim cuidava para não perdermos hora. Mas a hora dele chegou. Parou de funcionar e virou brinquedo, decoração, e depois lixo.

O outro não. O outro continuava lá, intocável, diga-se de passagem. Viu entrar e sair todo tipo de gente na copa da casa. Porque minha mãe e meu pai, bússolas da diplomacia que invejo até hoje, sempre gostaram de receber pessoas… Sem distinção.

Aliás, ensebado soberbo, certamente ria nos vendo chamar de “copa” o que ele provavelmente nomeia como “sala de jantar”. Via tudo acelerando o tempo.

A mesa que foi embora deu lugar a uma outra com promessas de que era mais resistente, de madeira nobre de demolição. Eu não vi chegar, mas duvido que ele não tenha simulado a Monalisa quando viu os entregadores entrando com ela na copa. Dias depois é possível que ele tenha gargalhando silenciosamente vendo meu irmão ajudar meu pai a parafusar as cadeiras que já estavam soltando os encaixes. No fundo, ele sabia que a outra mesa, mesmo cansada, é que era boa.

A outra mesa aguentou de tudo! A gente usava as cadeiras para fazer trenzinho e nos abrigávamos embaixo dela vazia para criar outros mundos. O Pingo, um fox paulistinha, arrastava a cadeira coçando as costas; o Lalo, meu cunhado, fazia a mágica de arrastar uma agulha com a força do pensamento que estava na apresentação da mágica, mas com um ímã escondido embaixo da mesa guiando a pontiaguda; o meu irmão Gérson embrulhando presentes para pessoas aleatórias do trabalho; a máquina de costura fazendo as fraldas de netas e netos; os bolos de aniversário do ano que, já velhos, decidimos fazer festinha para todos para reparar o passado; e o dia em que fizemos artes com as próprias mãos para dar de presente no dia das mães como se fôssemos crianças.

Ele viu tudo isso. Mas não mudou nada!

Ele viu a minha avó, Dona Ana Furlanetto de Souza, entrar algumas vezes com meu avô, Pedro Bento de Souza, e depois chegar sozinha quando ele faleceu. Ela ficou ali, sentada numa mesma cadeira de plástico que dei de presente e durou um bom tempo, mas também foi para o lixo. Dona Ana lutava com ele para saber a hora certa. Ela dizia que aquele pouco brilho refletindo a luz atrapalhava ver as horas. Hoje tenho certeza que ele fazia de propósito para ela não ver o tempo passar. Morreu com 102 anos – ela, claro.

Ele continua ali, pendurado no mesmo parafuso, na mesma parede, do mesmo jeito.

Eu não me lembro bem, mas meus irmãos me contam que por três vezes ele ouviu os pretendentes da minha irmã Kell pedir a mão dela em namoro, do outro lado da parede, na sala de estar, e depois entrarem para tomar o café amargo do estranhamento. O mesmo café amargo que tantas outras pessoas tomaram e o Felipe, meu marido, também tomou… Corajoso!

De certo que ele, o dito cujo, sorria de soslaio vendo o samba descompassado entre as observações sem jeito de minha mãe e os olhares acuados de tanta gente.

Nunca descansou. Nunca dormiu. Nunca parou.

Numa manhã de domingo, dia das mães, o sol não conseguia esquentar o friozinho. Toda gente já estava cansada do lockdown em meio à pandemia da COVID. A gente começou a se esperançar com a chegada da vacina, quando recebemos uma ligação telefônica do hospital em que a Kell estava internada em decorrência da maldita.

Não teve quem não chorasse. Tem quem diga que viu dele sair uma lágrima tímida, mas verdadeira, que nem mesmo as mais sórdidas das almas conseguem segurar. Ele chorou.

Anos antes, ela patrocinou a reforma da sala de estar. Ele não transparece, mas essa ocasião foi o mais perto que chegaram de seu reinado. As paredes tremiam. Ficou decidido que seria derrubada uma parte da parede que separava os cômodos para fazer um acesso e tirar a visão dos quartos para quem estivesse na sala de estar. No estuque das marretadas teve alguns azulejos que caíram, ele não.

Sempre do mesmo jeitinho, no mesmo lugar.

Viu a primeira bisneta chegar, a Júlia, e ela voltar dia desses já quase adolescente. Viu a outra neta se despedir para viver na Irlanda. Viu muitas feijoadas servidas no balcão da cozinha mais adiante. Mas a contagem regressiva de réveillon ele nunca viu! Guarda rancor, é possível.

Enquanto lia o parágrafo acima isoladamente para meu irmão Jefferson – que o tal viu ser Jefinho, sou interrompido: “Poxa, que sacanagem! Podia levar ele lá fora no gourmet, ou tomar um sol, né?”. Pobre inocente! Não sabe de nada.

Com pulseira, não vai no pulso de ninguém, o lustroso arrogante. É só mais um adereço para ele desfilar na cara de seus súditos.

A Dona Palmira, uma senhora já de idade avançada que morava de aluguel e sem nenhuma responsabilidade sobre a calçada quebrada, viajava ao Paraguai e trazia muambas com as quais, vendendo, fazia sua renda depois do governo Sarney.

Ela que o trouxe. Não tem culpa de nada, coitada, e já se foi também.

O ensebado soberbo segue ali, empáfio, e insuportavelmente inabalado. Parece querer dizer que é possível viver para sempre. Parece insinuar que a finitude é um problema só nosso. Deixe estar… com a nova rotina de meu marido, viajando a trabalho, tenho voltado a dormir na casa de meus pais de vez em quando, e estou planejando aplicar-lhe um sorrateiro e definitivo golpe. Como ninguém chegará até o fim desta crônica, viverei inocente.