Pandemia

Um punhado de dentes. As mãos, juntas feito concha pra beber água em bica, levavam um punhado de dentes ainda sujos de um sangue que já começara a desidratar. Eram dentes inteiros, com raízes. No meio da rua, gente com o rosto murcho esmurrava seus punhos nas buzinas dos carros, outros choravam olhando para o céu e, não distante e atônita, ela observou um jovem alto sendo cisalhado por um ônibus sem motorista e uma velha mureta. Olhou em volta e o pânico escancarado a ensurdeceu; uma fila com centenas de…
pessoas aumentava cada vez mais, e todas traziam seus semblantes pálidos e seus punhados de dentes nas mãos. De frente para a fila, usando os três degraus imundos do posto de saúde como palanque, uma mulher gorda e já sem nem um dos seus dentes gritava, com insucesso, as regras do atendimento: “Não toquem em ninguém! Vocês adquiriram um vírus contagioso. Não toquem em ninguém! Toda a equipe médica está preparada para atendê-los”. Deitado à beira do caos, na calçada, um mendigo roncava.


*Originalmente publicado na coluna “conto… ou não conto?”, do jornal Taperá, em 22 de junho de 2013.