O sinaleiro assistia, com desdém, o pobre cruzar a rua. De comportamento comum, trajado em azul e botas com bicos de aço, tomava sempre o mesmo rumo a fim de descansar para o despertador do dia seguinte. Declarava imposto de renda, comprava à vista, era eleitor e tinha diploma. Naquele início de noite, uma avalanche lhe tomou por dentro e fez real seus desejos de interagir com suas paragens. Não juntou roupa, nem dinheiro. Começou a andar sem destino e sem remetente. Quando deu por si, estava longe. Quando perguntado sobre sua origem dizia…
palavras sem sentido e se nomeava aleatoriamente, numa era Napoleão Bonaparte, noutra era Seu Madruga. Os caminhos lhe trouxeram um legítimo Roskopf, um livro de poesias sem autoria reconhecida e dezenas de trocas de roupas. Descansava seu corpo numa calçada quando viu chegar a primavera, travestida da memória do nascimento de sua filha. Juntou seus trapos, os enfiou em uma sacola de plástico e decidiu voltar para casa. Havia vivido o seu suficiente.
Originalmente publicado na coluna “conto… ou não conto?”, no jornal Taperá, em 05/10/2013.