O pintor veio fazer um orçamento para o reparo de uma janela enferrujada em casa. Um homem negro, magrinho, com cerca de 1,60m mais ou menos e, aparentemente, uns 60 anos. Fala simples cheia de educação, cuidado e poucas palavras.
Ele viu a janela pelo lado de fora e já foi adiantando que o problema era grave, como eu sabia, afinal, por ocasião das frequentes chuvas entre o fim de 2022 e início de março de 2023, a ferrugem comeu parte da janela, fazendo um buraco.
Comentei sobre um paliativo e ele falou, depois de muito cuidado, que dava pra fazer. Para isso, propus que ele entrasse em casa, ver o outro lado do estrago, assim conseguiria prever melhor como seria o trabalho.
Ele entrou e viu a minha gatinha Donnatela. Ficou assustado e encantado ao mesmo tempo. Expliquei o que era: “É uma sphinx. Ela já nasceu assim. É a raça dela. Não tem pelo mesmo”. Ele não acreditou.
“Lisinha, lisinha mesmo? Não tem nadinha de pelo mesmo? Não é a idade?”. Eu confirmei que não e me solidarizei com ele dizendo que quando a vi pela primeira vez eu achava muito estranha e tinha até certa repulsa. Lembro-me da sensação avessa ao toque no rabinho frio e articulado dela, a temperatura da pele, a forma como ela não olhava nos meu olhos, e por aí vai. Sempre fui criado com cachorros e, de cara, estava convivendo com uma gata… e sem pelos.
Contei que um dos maiores aprendizados da minha vida foi quando me peguei apaixonado por aquela gatinha que nem me lembrava mais da ignorância que só me fazia ver sua feiura; comecei gostando da patinha, que parece desenhada por artista no ápice da inspiração, depois me encantei pelo som que ela fazia bebendo água, e terminei amando brincar de chicotinho com o rabinho outrora asqueroso.
E ficamos, o pintor e eu, refletindo sobre como é importante respeitar as pessoas e suas querências, pois como já se dizia, “quem ama o feio, bonito lhe parece”. E rimos.
Daí desembestamos a conversar. Fomos andando, e falando, sobre a vida até a calçada. Lá ficamos mais de meia hora conversando sobre aprender sempre. Sobre lifelong learning. Sobre o real motivo pelo qual a burguesia enviava seus filhos e filhas para a Europa.
A burguesia ia para a Europa para abrir a cabeça, ampliar os horizontes, entender que o mundo é grande e se perceber livre. Empoderavam-se por lá.
O pintor então me diz que começou lendo Augusto Cury e agora está em “A Origem das Espécies“. E lá se vão mais alguns minutos falando sobre a vida, adaptação, conhecimento… e lifelong learning. A tarde começa a cair e começo a me preocupar, pois ele ainda pegaria o ônibus para sua casa.
Eu comento minha preocupação fazendo um gracejo para encerrar a conversa e não lhe ser inconveniente, por mais que eu estivesse completamente absorto naquele encontro. Então ele desabafa:
“Não se incomode! Sabe, Alex, eu gosto muito de conversar! Sempre fui de família pobre, pobre, ‘pobre de marré deci’, então fui gostar de aprender só depois de velho. Eu não conseguia aceitar que a vida era só aquela pequenez. Então comecei a estudar, ler as coisas, tentar entender o mundo melhor. E a gente é pobre ainda, sabe… Moro na favela, então por lá quando tem conversa é só sobre jogo, mulher, e por aí vai… Quando tem uma oportunidade igual essa de conversar assim, eu acho bom”.
Num dado momento, toca o celular, ele pede licença e atende todo sorridente, como estivera desde o início da conversa por educação, mas agora era o sorriso largo do prazer. “Deus lhe abençoe, minha filha!”. Eu me afasto para sua privacidade e ele segue conversando.
Terminando o telefonema eu retomo a conversa para encerrarmos, pois já começava a escurecer, e vou arrematando sobre a bela oportunidade que tivemos de nos conhecermos surgindo do encontro inusitado com a Donnatela, uma gata sem pelos. Ele sorri e diz: “Pois é! Observando bem à nossa volta a gente aprende o tempo todo. Mesmo que a gente não tivesse nem conversado, eu teria aprendido que tem uma gata sem pelo… Darwin deve explicar”. E gargalhou.
Antes de ir, fez questão de explicar a ligação.
“Essa no telefone era minha filha. Desde pequena a gente incentivava ela a estudar e falava pra ela que estudar iria dar melhores oportunidades pra ela. E não é que a ‘bichinha’ pegou gosto pra coisa? Chegou 17 anos, fez ENEM e passou para biotecnologia na UFBA, você acredita? Daí não quis. Fez vestibular para nutrição na UNICAMP e passou também. Não quis. Daí a gente fez as contas em casa, sobre a idade dela, as possibilidades, conversamos bastante e apoiamos ela. Ela estudava direto. Vivia com a cara nos livros. Fez de novo UNICAMP, mas agora ela queria medicina; um dos mais concorridos do Brasil, Alex! No começo desse ano fomos presenteados e ela passou”. Sorriu orgulhoso.
“Daí agora ela estava me contando que o professor dela brincou com ela na sala de aula hoje, sabe? Ele é meu cliente. Pintei a casa dele”.