Um dos meus principais aprendizados fazendo faculdade de Eventos foi sobre comportamento. O gatilho foi imediato, vendo agora o episódio Astroworld, da série Desastre Total, na Netflix, que conta a história da criminosa idealização e produção do festival realizado por Travis Scott em Houston, Texas, em 2021.
Aquilo foi criminoso, estúpido e inconsequente. Talvez até com um tempero de arrogância, prepotência e DIY. Isso mesmo, aquela cultura do “faça você mesmo” que conhecemos bem e cultuamos o tempo todo. E esse tempero está presente em muitas receitas da nossa vida; vai desde a tia que organiza as festas da família, passa pelo amigo que planeja o churrasco da galera e chega ao empresário que acha tudo uma bobagem e pede para a recepcionista cuidar da confraternização de fim de ano da empresa.
Com pouco esforço de memória, você vai lembrar de ter vivido ou protagonizado algo parecido.
O perigo é que esse comportamento gestado socialmente dentro dos núcleos familiares vai evoluindo, e ecoa em ambientes profissionais nos quais as “vítimas do brigadeiro enrolado sem luvas” não são só a família da tia “criminosa” mas pessoas que pagaram ingressos, estão cheias de sonhos e são completas desconhecidas, com suas complexas subjetividades.
Estive lá, observei o comportamento e voltei para te contar que tem uma galera achando que assistentes pessoais são só ferramentas que respondem perguntas. Mas você sabe conversar?
CONTINUAR LENDO...O festival Astroworld, do Travis Scott, foi um tumor dessa mentalidade. Resultado direto da combinação entre idolatria cega e desprezo por processos técnicos. Foram 10 mortos. Milhares de feridos.
A Live Nation e Travis Scott gerenciam até hoje processos relacionados ao evento, fizeram acordos insignificantes perto da lucratividade que fabricam, e seguem para o esquecimento relacionado ao caso agraciados com a adoração de fãs que só se multiplicam.
Mas o papo aqui é outro. A gente vai conversar sobre como você pode cometer os mesmos erros que levaram à tragédia em Houston, talvez em escala menor… porém replicando a essência.
Sabe quando você não respeita profissionais que estudaram durante anos um determinado tema e vivem em constante atualização sobre comportamento e mercado, por exemplo? Aí você erra como a Live Nation em 2021.
Sabe quando você vai ao ChatGPT, faz uma pergunta medíocre e acha que não precisa de mais nada? Aí você falha como Travis Scott no Texas.
O conhecimento e a expertise são produtos do tempo, da maturação, e envolvem múltiplas camadas de hard skills e soft skills. Por isso, o futuro será das pessoas generalistas conscientes de suas limitações e sensíveis às necessidades estratégicas. Você será especialista em um ou dois temas, generalista em outra dezena, e terá um mindset apurado para identificar e respeitar o know-how de outras pessoas com as quais construirá seu ecossistema.
Para se ter ideia, o festival Astroworld não contratou especialistas em segurança de grandes multidões antes do evento, por exemplo. No documentário, inclusive, é angustiante ver o depoimento de um dos seguranças do fatídico dia: amigo de um outro já contratado, ele foi recrutado por mensagem de texto, no dia anterior, então lhe deram um colete na van a caminho do local de trabalho e foi isso. Sem nenhum critério. Sem nenhum treinamento. Sem nenhum briefing.
O principal problema do Astroworld começou logo na idealização. Tiveram a “brilhante” ideia de fazer um evento com dois palcos, em que todo o line-up estaria em um único palco e o headliner, Travis Scott, encerraria com show em outro palco. Ou seja, assim que acabou a programação do palco 1, todas as pessoas, ao mesmo tempo, foram ao palco 2.
Bom, de repente, caso você seja generalista com especialidade em outras áreas e não em comportamento, pode ser que não veja problema nisso. E está tudo bem! Afinal, como conversamos, você é especialista em uma ou duas áreas no máximo.
Tudo bem. Então qual é o problema tão “óbvio” para uma empresa de eventos, que a Live Nation não identificou?
É que quando se chega a um evento antes do show começar, no espaço-tempo em que espera seu ídolo ou sua diva entrar no palco, você vai “conquistando” seu território, ou seja, vai fincando seus pés ali e ocupando aquele perímetro.
E isso, além de social, é ancestral. Somos territorialistas desde a domesticação do trigo, quando passamos a depender da terra e a defender o lugar. Isso alterou expressivamente a forma como pensamos, tal qual a inteligência artificial fará agora novamente conosco. (HARARI, 2014)
No contexto de comportamento coletivo, essa territorialidade é um elemento fundamental para o controle de multidões. O pânico coletivo é um colapso da coesão da massa na mesma medida que é seu controle e, quando não há organização simbólica ou espacial que distribua os corpos e os desejos, o impulso coletivo entra em curto-circuito. A massa exige proximidade, mas entra em desordem quando comprimida além do limite da percepção de controle. (CANETTI, 1960)
Na prática, é como tentar empurrar um vaso de planta. Se houver apenas um, você consegue. Mas se atrás dele houver outros, e todos estiverem encostados, justapostos, comprimidos no mesmo plano, nenhum deles cede. Nenhum pode recuar. A massa vira obstáculo de si mesma.
Em um evento, assim como você conquistou o seu espaço esperando horas para ver aquela atração, outras pessoas também fizeram o mesmo, por isso não há gargalo, pessoas espremidas, etc.. Em alguns casos, como no show da Lady Gaga em Copacabana, por exemplo, foram dias de manutenção dos micro-territórios de fãs que viajaram de toda a parte do mundo para o espetáculo. Ninguém conseguiria movimentá-los como aconteceu no sufocamento coletivo do Astroworld.
É por isso, também, que festivais que atraem multidões fazem mais do que um palco com atrações simultâneas ou quase simultâneas; e quando você chega depois, a probabilidade de conseguir “colar na grade” é perto de zero.
Mas a Live Nation e o Travis Scott não fizeram o óbvio para quem trabalha com comportamento e administra multidões como modelo de negócio. O resultado foi milhares de pessoas indo para o mesmo local, ao mesmo tempo, sem freio, sem controle, sem referencial visual, e espremidas até o colapso.
Em um curso de graduação de Eventos você pode ter aulas de mise en place, cerimonial, etiqueta, gastronomia, logística, legislação e oratória. Mas, a essência da profissão que comercializa sonhos e manipula o espectro hedônico das pessoas, é entender “comportamento”.
Respeite especialistas.
Alex Pinheiro é artista, apresentador, e profissional para inteligência de mercado e presença de marca.
É pós-graduado em Digital Business (USP), graduado em Eventos no Centro Universitário N. Sra do Patrocínio, e Técnico em Turismo pelo Centro Paula Souza.
Atua com mentoria estratégica, gestão de tráfego na internet e arquitetura de negócios.
Harari, Y. N. (2014). Sapiens: Uma breve história da humanidade. L&PM Editores.
Canetti, E. (1960). Massa e Poder. Companhia das Letras.